"A imaginação é mais importante que o conhecimento."

Albert Einstein



quinta-feira, 26 de março de 2009

Sebo

"O homem disse o próprio nome e ficou me olhando atentamente. Como alguém que
tivesse atirado uma moeda num poço e esperasse o "plim" no fundo. Repeti o nome
algumas vezes e finalmente me lembrei. Plim. Mas claro.
- Comprei um livro seu não faz muito.
Ele sorriu, mas apenas com a boca. Perguntou se podia entrar. Pedi para ele esperar
até que eu desengatasse as sete trancas da porta.
- Você compreende - expliquei -, com essa onda de assassinatos...
Ele compreendia. Estranhos assassinatos. Todas as vítimas eram intelectuais. Ou
pelo menos tinham livros em casa. Dezesseis vítimas até então. Se soubesse que
seria a décima sétima eu não teria me apressado tanto com as correntes.
- Você leu meu livro? - ele perguntou.
- Li!
Essa terrível necessidade de não magoar os outros. Principalmente os autores
novos.
- Não leu - disse ele.
- Li. Li!
Essa obscena compulsão de ser amado.
- Leu todo?
- Todo.
Ele ainda me olhava, desconfiado. Elaborei:
- Aliás, peguei e não larguei mais até chegar ao fim.
Ele ficou em silêncio. Elaborei mais:
- Depois li de novo.
Ele nada. Exclamei:
- Uma beleza!
- Onde é que ele está?
Meu Deus, ele queria a prova. Fiz um gesto vago na direção da estante.
Felizmente, nunca botei um livro fora na minha vida. Ainda tenho - ainda tinha - o
meu Livro do bebê. Com a impressão do meu pé recém-nascido, pobre de mim.
Venero livros.
Tenho pilhas e pilhas de livros. Gosto do cheiro de livros novos e antigos. Passo
dias dentro de livrarias. Gosto de manusear livros, de sentir a textura do papel com
os dedos, de sentir seu volume na mão. Me ocupo tanto de livros e quase não me
sobra tempo para a leitura.
Ele encontrou seu livro. Nós dois suspiramos, aliviados. Como é fácil fazer a
alegria dos outros, pensei. Com uma pequena mentira eu talvez tivesse dado o
empurrão definitivo numa vocação literária que, de outra forma, se frustraria. Num
transbordamento de caridade, declarei:
- Que livro! Puxa!
Mas ele não me ouviu. Apertava o livro entre as mãos. Disse:
- O último. Finalmente.
- O quê?
Ele começou a avançar na minha direcção. Contou que a tiragem do livro tinha sido
pequena. Quinhentos exemplares. Sua mãe comprara 30 e morrera antes de
distribuir aos parentes. Ele tinha ficado com 453. Dezessete cópias tinham acabado
num sebo que, através dos anos, vendera todos. Ele seguira a pista de 16 dos 17
compradores e os estrangulara. Faltava o décimo sétimo.
- Por quê? - gritei. E acrescentei, anacronicamente: - Homem de Deus?
No livro tinha um cacófato horrível. Ele não podia suportar a ideia de descobrirem
seu cacófato.
- Eu não notei! Eu não notei! - protestei.
Não adiantou. Ninguém que tivesse lido o livro podia continuar vivo. Ele queria
deixar o mundo tão inédito quanto nascera.
- Mas essas coisas não têm import... - comecei a dizer.
Mas ele me pegou e me estrangulou.
Bem feito! Para eu aprender a não ser bem-educado. Meu consolo é que depois
ele descobriria que as páginas do livro não tinham sido abertas e o remorso
envenenaria suas noites.
Enfim. É o que dá frequentar sebos."

Texto: Luís Fernando Veríssimo, no Livro "As Mentiras Que Os Homens Contam"


Eu ri, ri muito...ninguém mandou mentir!
Já dizia mamãe: "melhor ficar vermelho por alguns minutos, do que amarelo por um bom tempo!"

Mães sábias...

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